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Plástico

Running


Autora:
@heydebee_ | Beta: @heydebee_

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Então ele apareceu.

É claro, eu esperava sua presença; há muitos anos ele dizia que era ali que ele gostava de estar, para poder pensar e tomar decisões importantes da sua vida. Ali, nos bancos em frente ao rio, com a ponte ao fundo. Honestamente, achava que ele falava sobre fazer isso durante o verão mas, conforme fui chegando à sua idade (não éramos muitos distantes quanto a isso), fui entendendo que também tinha predileção pelo frio, especialmente porque nenhuma pessoa, em sã consciência, gostaria de olhar para as águas geladas à frente.
Fiz menção em levantar e dizer "olá", mas senti-me invasora. As margens estavam vazias, a não ser pelas pessoas que voltavam para casa tarde da noite, sob o céu estrelado de um frio outono. Eu podia ouvir o farfalhar de suas vozes ao fundo, podia até distinguir um prato ou outro, um restaurante, talvez? Mas meu objetivo era aquele: era vê-lo, nem que fosse um dia na vida, nem que fosse ao longe. Ver o homem que roubara meu coração tão completamente por conta de uma música, de uma letra, de vídeos que hoje só existem nas memórias de internet e em alguns dvds.

Eu estudara quase oito anos por aquele momento. Queria terminar o curso e viajar até a apenas para dizer a ele o quanto era apaixonada por tudo que ele fazia. Era ser muito fangirl? Talvez. Na verdade, era ser muito idiota mesmo, mas quem dita os sentimentos de uma mulher apaixonada? foi meu primeiro grande amor, para valer. Sim, tivera namorados e alguns rolos na vida mas, lá no fundo, meu coração pertencia a um único homem, que calhava de morar em outro país. Tinha sua própria cultura, seu próprio idioma. Um homem que tinha centenas, milhares de garotas ao seus pés, dizendo coisas como 'eu te amo' e comprando seu trabalho. E eu, na época, só pude me inscrever no cursinho do centro da cidade e guardar o quanto podia para fazer aquela viagem de mais de vinte horas, apenas para vê-lo ao longe. Talvez não falasse com ele mas apenas queria vê-lo.

Senti as lágrimas chegando aos meus olhos e lembrando-me como era idiota. Eu poderia ter dado entrada em um carro com o dinheiro da passagem, poderia ter passado férias luxuosas no Brasil mesmo mas não, me desloquei até o outro lado do mundo apenas para ver um homem, que nem sabia da minha existência porque... eu ainda estava presa àquele sentimento, àquela paixonite nostalgica.
Certo, já tinha visto . Ele era lindo, mesmo todo empacotado de casacos e toucas. Eu sabia que era ele porque, mesmo com o rosto coberto... eu simplesmente sabia que era ele. Agora que meu desejo havia se realizado, eu poderia ir embora. Não ia ter coragem de dizer um 'a' para ele, mesmo. Me conhecia o bastante para saber que perderia a oportunidade.
Eu poderia me aproximar da grade com o intuito de ver se o rio congelara e parar ao seu lado. Com sorte, com o canto de olho ver seu olhar perdido e fixo no outro lado do lago. Aquele olhar que sempre sonhara ver tão de perto, mas que, de preferência, tivesse os olhos voltados para mim. Era isso: iria parar ao seu lado, em uma boa distância, não falaria nada, olharia para a água e cairia fora.
Ele era alto, ao menos mais alto que eu e isso eu já sabia. Sua pele, sempre corada, agora parecia cera, tamanho era o frio e aquecia as mãos dentro do bolso frontal do casaco.

- Ei! - me ouvi falando alguns segundos depois. Nem acreditava que pudesse ser tão cara de pau. Minha voz tremia tanto que achei que fosse entrar em colapso nervoso. - Você tem... você tem... - gaguejei.
olhou para o lado e eu comecei a corar por debaixo da minha touca e a suar dentro de meu casaco. Era tão idiota estar na presença de uma pessoa a qual você já fora tão apaixonada na vida! - Sim?
- V-v-ocê tem... horas? - suspirei. Já havia sido humilhante o bastante.
olhou para o pulso. - São nove e vinte.
- Obrigada. - sorri de leve, voltando a mirar o rio. Pelo menos não havia desmaiado, pensei, querendo rir e, de fato, sorrindo com o canto de olho. - Quando chega o inverno?
- A televisão disse que seria amanhã. - ele respondeu. - Você é a primeira turista que vejo que vem para a no inverno. Gosta tanto assim de frio?
Ri de leve, ainda sem olhar para ele. Talvez esse fosse meu ponto de apoio: responder sem olhar para seu rosto. Não estava completamente certa da minha lucidez porque realmente estava frio e eu desejava fortemente um chocolate quente.
- Não há tanto frio assim no meu país. E, além do mais, vim para a com um propósito. E se o frio está embutido, isso é ótimo porque gosto.
Ficamos em silêncio alguns instantes. Uma ave silenciosa atravessava o outro lado da ponte.
- Seu é muito bom.
Sorri. - Muito obrigada. Foram quase dez anos de estudos.
Senti trocando o próprio peso nos pés. - Quase não se nota sotaque.
- Minha professora era muito boa. - sorri. Respirei fundo. Meu coração batia tão forte que morria de medo de me escutar ou de minha voz ser abafada pelo barulho e eu acabar metendo os pés pelas mãos. - Bom, muito bacana conversar com você. - me permiti virar de frente e olhar seu rosto. Meu Deus, como podia ser...? Ele continuava exatamente como na foto de revista que eu tinha guardado em um caderno, uma foto de dez anos atrás. - Boa noite.
Senti-me invadida pelo amor e pela nostalgia novamente e sentia-me a ponto de chorar, pensei, enquanto dava alguns passos enérgicos mas lentos em direção aos bancos novamente. Precisava dar o fora dali o mais rápido possível ou então ele saberia que...
- Você estava esperando por mim, não é? - deu uma risadinha e eu estaquei. - Estive aqui outros dois dias e você estava no mesmo banco. Ontem, senti que alguém me observava e até pensei que você poderia querer me matar mas, quando vi que era uma moça, mudei de ideia. E hoje, quando cheguei às nove, você estava no mesmo lugar, olhando para os lados, provavelmente esperando por mim.
Engoli a seco.
- Vai me dizer o que quer falar comigo ou devo voltar amanha? - ele deu outra risadinha.
- É que... - comecei, meu coração batendo feito escola de samba dentro do peito. Certo, respirei fundo pensando, vamos acabar com essa palhaçada de uma vez. É hora de dizer a um cara, que você nunca viu mais gordo, que você é completamente apaixonada por ele há mais de dez anos, que acompanha sua carreira desde sempre e que esse momento presente foi todo arquitetado para acontecer - menos a parte do bate papo.
Quando virei-me, ainda mantinha as mãos dentro do casaco e me observava, curioso. O estranho caso da turista estranha que tinha um muito bom.
Corei.
- Você se importa se eu não olhar para você quando eu falar o que preciso? É que, se não, vou travar e não vou conseguir.
- A vontade.
- Certo. - olhei para seu sapato e para algumas folhas que ainda estavam no chão e pigarrei. - Olha, , isso vai soar incrivelmente idiota então peço que, se você for rir de mim, não seja tão na cara porque não sei se conseguirei lidar com a humilhação. - parei mas ele fez um gesto de continuação. - Sou sua fã pelos últimos dez anos. Não vim para a para te seguir nem nada disso. Na verdade, vim fazer uma especialização de três meses em e acho que uni o útil com o agradável, sei lá. Por favor, não achei que sou algum tipo de sasaeng maluca, mas meu propósito era te procurar, sabe, nem que fosse pra te ver de longe. Para ter esse sonho realizado e conseguir seguir a minha vida sem ter que sonhar com esse dia. Eu lembro que, há muito tempo, você disse que curtia vir ao rio para colocar as ideias em ordem e fiz um levantamento de tudo que eu sabia, vim para cá e mal acreditei quando te vi no primeiro dia! Eu achei que seria o suficiente - minha voz começou a ficar embargada. - mas eu precisava te ver mais uma, sabe, pra ver se esse sentimento me deixava. E aí veio o dia de hoje e estamos aqui coonversando e cheguei a conclusão de que eu ainda sou apaixonada por você e isso é muito ridículo porque você é um artista e eu sou apenas uma fã iludida . Minha época de ilusão já deveria ter passado há muito tempo mas... não consigo. - engoli em seco. Pelo menos tinha falado, me humilhado em , ainda por cima, o epítome da mulher idiota. - Olha só, finge que não aconteceu, tá? Que esse papo não aconteceu, nem que eu viajei meio mundo pra me humilhar em um idioma tão tonal e confuso.
permaneceu calado, decerto pensando no que havia falado para ele e com certeza achando que eu era maluca. Eu conseguia sentir que ele estava dividido entre me achar estranha, uma sasaeng ou uma fã iludida. quanto a essa última opção, ele já era craque el dar foras monumentais sem alarde.
- Eu não tenho trabalhado muito.
- Eu sei. Você falou para aquele website que queria dar um tempo na carreira e aí veio a pandemia.
- É, foi uma pausa até forçada. - sorri, meio nervosa, ainda sem conseguir olhar para ele. - Voce não é jornalista, não é?
- Eu? Ah não, Deus que me perdoe! - estremeci. Até tinha estudado um pouco mas prefirira seguir outro caminho. É uma profissão muito bonita, mas não para mim.
fez um bico e permaneceu em silêncio, passando por mim e sentando no banco que eu outrora estava. Na falta de ideias, sentei-me ao seu lado e, juntos, observamos as estrelas em um céu fechado. Era quase o cenário de uma novela ou de uma fanfic, não fosse por eu saber que isso não existia e que nem remotamente iria gostar de mim. - Certo, vamos lá. Primeiramente, como devo te chamar?
- A-. - balbuciei, ainda sem olhar para ele.
- Ok. . - ele pigarreou. - Olha, de fato é uma situação bem estranha, bem esquisita, saber que uma pessoa veio de tão longe e que se diz apaixonada por você. Eu não sei como reagir a isso.
- Você não precisa. Até porque eu já fiz o que deveria fazer, falei o que deveria falar e aí agora vou focar direito na especialização. Para ser sincera, não estava sendo a melhor das alunas mesmo...
- O que te faz apaixonada por mim todos esses anos? Quero dizer, nunca te vi, nunca nem soube da sua existência e, para mim, você está englobada no meio das fãs.
e sua luva de pelica. Nunca falha.
- Você não conhece meu dia a dia, meus dias ruins e meus dias péssimos. Você só conhece o que eu quero que você conheça. É por isso que temos empresários ou, no meu caso, nem mais isso. - olhei de soslaio para , que agora tirava um cigarro do bolso e acendia com um isqueiro. De fato, eu não conhecia seus problemas mas sabia que, com certeza, ele tinha manias que me irritavam como, por exemplo, fumar.
- Achei que tinha parado. - suspirei fundo.
- A pandemia me trouxe de volta. - ele esticou o maço para mim e eu fiz que não. Então, após guardar no bolso, deu uma longa tragada e jogou a fumaça no ar. - Possivelmente você não gosta de mim fumando, deu para perceber no seu tom. - fiquei calada. - Entende? É isso que quero dizer. O que você sabe e o que você conhece são coisas completamente diferentes. O interior de um artista pode ser o completo oposto do que você vê. O simples fato de estar nos noticiários faz com que as pessoas associem nossa imagem à pessoas felizes e despreocupadas quando, na verdade, a realidade é bem diferente. Ninguém fala dos problemas que temos que lidar. Todos querem apenas o lado bom das coisas. É mais fácil se apaixonar por pessoas perfeitas e tê-las em seu imaginário, para que suas vidas tornem-se menos enfadonhas e tristes.
E lá estava o lado meio estúpido de , que, na verdade, me fizera sempre um grande favor. Adorava ver sua risada descompensada e de como isso fazia uma situação inteira ser infinitas vezes mais engraçada mas também sabia que ele era meio grosseiro, quando por trás das câmeras. Já tinha lido um relato de uma colega de cena, que dizia que era um cara muito calado e na dele. Ele nunca se abria com ninguem.
- Eu entendo. - balancei a cabeça, ainda sem olhar diretamente para ele. Mas pelo menos conseguia virar a cabeça rapidamente e assistir seu cigarro aceso e o cheiro mentolado daquele negócio cancerígeno no ar. - E creio que você tem razão.
- Desculpa ser tão sincero quanto a isso, . Mas nem sempre a vida de uma pessoa famosa é o recorte de um season greetings.
Lembrei-me do último season greetings que ele havia participado como membro oficial da banda. - Então a vida não é aquela mesa cheia de rosquinhas coloridas e granuladas? - brinquei,
- Eram de mentira. - ele deu uma risadinha, virando a ponta do cigarro entre os dedos. - Tinha que ver a cara do , ficou decepcionadíssimo quando viu a mesa, mordeu uma rosquinha e percebeu que eram de plástico.
Me recostei finalmente no banco. - Acompanhei o grupo até acabar o contrato. Sentia sua falta lá mas a vida precisava continuar. - ergueu o cigarro e deu mais uma tragada enquanto olhava para as luzes da ponte. Reuni todas as minhas forças e perguntei, de uma só vez. - Sente saudades deles?
- Me julgam um traidor até hoje, mesmo sabendo a verdade dos fatos. Eu não vou atrás para me explicar mais uma vez.
Embora me sentisse muito mais relaxada, eu ainda sentia que poderia ter um ataque de choro a qualquer momento. Sonhara com aquele momento por tantos anos que, agora que acontecia mais do que eu havia imaginado, tudo parecia obra tirada de um dorama mal escrito e pisoteado com uma manada de elefantes.

Felizmente era tudo realidade. Ele estava ali, sentado do meu lado, ainda olhando o toquinho de cigarro em sua mão esquerda, com o olhar perdido. Alto, encasacado, entoucado, cheio de experiências e sentimentos que eu nunca saberia porque me apaixonara pela capa de uma revista.
Ainda me sentia apaixonada, não me entenda mal, mas aquela conversa havia sido o balde de água que eu precisava para pôr fim a uma paixão platônica de mais de dez anos.

Ficamos em silêncio por alguns minutos antes de eu sentir meu telefone vibrando no bolso. Meu alarme de estar de volta ao apartamento, para a adaptação ao fuso horário ser menos intensa. Por mais que eu quisesse ficar ali e bater papo com ele, por mais que quisesse manter aquele momento, eu precisava voltar e preparar-me para dormir. Teria de estar na universidade às oito e o cansaço do dia ainda era intenso.
- Preciso ir. Obrigada por abrir meus olhos. - disse finalmente, levantando-me. - E muito obrigada por encher meu vocabulário de tantas palavras novas, com certeza não teria aprendido com a professora.
deu um sorriso, aquele sorriso. - Não há de quê.
Eu sabia que, no momento que me virasse, explodiria em lágrimas e não as pude evitar. Não mais por finalmente ter concretizado um sonho mas porque o objeto dos meus sonhos pisoteara os mesmos com um sapateado irlandês. Era quase como terminar um relacionamento de anos, sendo que nem remotamente havia sido meu namorado. Havia sido apenas uma paixão platônica.
- . - sequei o rosto como pude antes de parar. - Isso vai soar estranho até mesmo para mim mas eu realmente me preocupo com uma garota voltando pra casa sozinha, especialmente se for tarde da noite. Posso te acompanhar?
Dei de ombros. - E se você for um tarado?
riu.
- Você me 'conhece' há dez anos. Julgue por si mesma.
- Nunca vi relatos afirmando qualquer coisa. Na verdade, nunca vi relato algum confirmando um relacionamento. - deu de ombros.
- Prezo por mim, apenas isso. - não respondi, voltando a colocar as mãos dentro do casaco. - Você é uma sasaeng maluca? - dei uma risada ao negar. - Pois bem, eu não sou tarado. Se quiser, empresto meu telefone para você perguntar às pessoas se sou tarado.
- Eu passo. - sorri, recomeçando a andar. - O que te fez... você sabe, querer me acompanhar?
- , vamos deixar uma coisa clara aqui: eu não quero e nem irei alimentar suas esperanças de anos a meu respeito. Eu apenas fico mesmo preocupado se estou conversando com uma mulher e ela precisa andar, tarde da noite, em ruas escuras. Sou um cavalheiro, apenas isso.
Concordei com a cabeça. Meus sonhos já haviam sido massacrados mesmo, que mal poderia fazer? Na pior das hipóteses, se tentasse algo errado, era só chegar em algum jornal no dia seguinte e falar poucas e boas sobre ele. Tenho certeza de que iriam adorar ter uma manchete exclusiva sobre o Sr. Certinho cometendo infrações graves.
Mas acontece que, querendo ou não, eu sabia que, lá no fundo, ele era uma pessoa boa. Era só ver as fotos com seu sobrinho, com as crianças com quem contracenava, com as equipes de filmagem. Todo mundo adorava o cara. Então, não era possível que ele fosse esse poço de amargura que deixara no ar.
Portanto, apenas dei um sorriso e caminhamos em silêncio, noite adentro.


FIM




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