DUBLÊ

DUBLÊ


Autora:
@heydebee_ | Beta: @heydebee_

PRÓLOGO

"Eu não quero saber, se vira! Isso já passou dos limites!" - a voz dele ecoava na minha mente como nunca havia. Ele tinha todos os motivos para gritar comigo, mas antes fosse por destruir um boneco de sua coleção muito bem catalogada dos Power Rangers. Eu não tinha mais idade para aturar seus berros e manias.
- Você tem ideia do que está me pedindo? - argumentei, encostando o celular no ombro e terminando de colocar comida para meu cachorro. - Eu não faço isso há anos!
-Bom, dê teu jeito. Eu quero respostas e sei que você é boa o bastante para me trazer o que quero! - sua voz ficou ainda mais rouca. Vamos dizer que você terá um pagamento muito bom se disser que sim.
- Depende. - me levantei, enquanto o bichinho corria louco como era para comer. Botei a mão na lombar, estava ficando velha. Ou apenas estava fora de forma. A academia estava lá, a cobrança batia todo mês no meu cartão de crédito e eu não ia porque sempre que dava o pique, acontecia alguma coisa. Hoje, a culpa foi dele em me ligar. -Falemos de dinheiro.
- Eu não vou entrar em detalhes por telefone, . - ele suspirou. Eu sabia que precisava ser breve, ele estava ficando sem paciência. - Basta dizer se aceita ou não. Quero que seja direta e pare de me enrolar, porque caso não concorde, preciso procurar outra pessoa. - fiquei calada, analisando. Bom, para ele ter me procurado em primeiro lugar, é porque confiava em mim. Ele poderia ser tudo, menos mentiroso.
Analisei minhas opções. Custo com passagem, moradia, alimentação, tudo. Minha gaveta continuava trancada e eu tinha a ligeira sensação de que sairia uma tarantula de dentro dela.
Peguei a chave de dentro de uma bolsinha da Hello Kitty, dentro da cristaleira e enfiei na fechadura; ela fez um clique audível o bastante para que o outro lado da linha ficasse mudo. Dentro dela, fotos, um livro de capa de couro azul, meu passaporte. A carteira de motorista oficial e um estojinho com todas as identidades falsas.
Ah, merda...
- Ok, você venceu.

E agora estou aqui, dirigindo a oitenta quilômetros por hora, puta nas calças de fome e vontade de mijar, seguindo esse caralho de Maps pra achar o prédio que será minha casa pelos próximos dias. Ou semanas. Ou meses. Ou quanto tempo isso durar.
Eu tenho vinte e sete anos, porra! Não tenho mais coluna de dezenove pra sair pulando de um carro em movimento para uma moto antes que o carro exploda!

Regras de uma I.P.
Regra #1: Caso o trabalho seja importante para você, a nível pessoal, nunca concorde de cara. Enrolar é sempre bom, especialmente porque vão achar que você está desocupada. Bom, você até pode estar desocupada mas ninguém precisa ficar sabendo disso.

CAPÍTULO 1

Para darmos um início a essa conversa toda, acho que seria de bom tom me apresentar. Meu nome é e eu tenho 27 anos. Moro no Brasil e até onde sei, estava muito bem. Tinha voltado a morar com meus pais, é... não é algo que eu possa me orgulhar, porque sempre imaginei chegar aos 27 com a minha casa e minhas coisas. Já tinha terminado a faculdade, meio que aos trancos e barrancos por causa de um emprego que logo entro em detalhes, e não estava na área. Na verdade, não sei nem como fui parar onde eu estava, cuidando de um site de fofocas muito ridículo que basicamente me mandava achar podres, transformar em coisas mais podres e sair jogando por aí. Eu tinha nojo de mim quase todos os dias mas era meu trabalho e trabalho estava e está em falta. Não tem essa de ficar escolhendo muito não, a gente agarra a primeira coisa que vir.
Sobre o emprego, a confissão: eu era policial. Do tipo que fica infiltrada, usa identidades falsas, perucas loiras compridas, óculos escuros e jaquetas do exército. É divertido no início, é. Tenho algumas estórias muito alucinantes, como ter de cheirar açucar de confeiteiro, dar um tiro no próprio pé (literalmente) (em minha defesa, a arma atirou sozinha, eu não tive nada a ver com isso) e, dentre meus casos mais "famosos", resgatar um famoso ídolo do k-pop de um sequestro. As coisas não acabaram muito bem, não. A mandante morreu atropelada por um caminhão desgovernado, tive bolhas alucinantes nos pés por semanas por excesso de salto alto e até hoje me sinto estranha. Foi uma época estranha, o inicio dos meus 20 anos.
Se faria de novo?
Não. Definitivamente não. Não, nunquinha, never, nops.

Aquela ligação tinha surtido em mim um efeito alucinógeno.
Depois de largar tudo para me formar decentemente e voltar para casa, decidi ter uma vida mais tranquila. Você sabe, ter plantas, um cachorro, procurar o amor (não tinha dado muito certo após o caso do k-idol e terminei meu relacionamento pouco depois), assistir o programa da Xuxa. Eu sentia saudades, é claro, do Green, do Zhou Mi, até mesmo daquela maluca da Jessica e de seu perfume enjoativo, mas eu não iria voltar. Eu queria mudar o meu jeito de ser. Queria ser mais tranquila, deixar de ser tão bruta e ríspida, aprender a usar um vestido elegante usando saltos sem sair ou me desequilibrar. E isso tudo parecia ter sido não só seis anos antes mas uma vida inteira antes.
Estacionei na frente do prédio de aparência chique e observei. A janela do andar quatro estava acesa e eu repassei várias vezes tudo o que havia me acontecido naquela manhã. Folheei a pasta com paciência, folha por folha. Tinha um nome coreano, que não tinha nada a ver comigo: Park Won Hee. 24 anos. A carismática vocalista que tinha senso absurdo de aegyo.
- Você só deve estar de brincadeira com a minha cara! - gritei, jogando a pasta na mesa, naquela mesma manhã. - Olha bem pra mim, eu não sei nem cantar a música dos dedinhos, como é que vou ser cantora?
Ele suspirou, espalmando a mão para uma moça sentada logo ao meu lado. Estávamos os três em um desses caraoquês super caros, escondidos, que artistas normalmente se encontram para namorar. Ele fora esperto e deixou tudo como um encontro com advogado..
- Essa é a Sang Jin noona. Ela vai ser sua voz.
- Você quer que eu seja um caso Milli Vanilli? - perguntei, já sentindo cabelos brancos surgindo na minha cabeça. O caso Milli Vanilli havia sido muito grande nos anos 90, só perdendo pra versão Britney Spears do caso. - Eu não posso dublar a voz de alguém assim, é arriscado!
- É nossa única alternativa! Acha que a Sang Jin aqui está contente? Tá não!
- Na verdade há um possivel projeto de eu ser solo mas é só fofoca que ouvi, nem sei se é verdade. - ela sorriu, puxando a máscara e sorrindo docilmente. - Olha, se ele diz que você é a melhor, acredito que seja a melhor. E precisamos muito de você, acho que concordamos todos que já deu o que tinha que dar, essa estória.
A "estória" se chamava Shin Ho Seok. O vocalista saradaço e bonitão do Monsta X, que foi envolvido numa maracutaia das grandes, saiu do grupo e, desde então, não deu as caras. Era um conhecido meu, que trabalhava nessa empresa, que tinha me ligado. Queriam ajuda pra achar um x9. Alguém estava vazando informações confidenciais do caso para a imprensa e eu tinha que me meter e descobrir quem era, porque sou "boa com as palavras".
- Isso tudo é muito fodido. - dei mais uma volta na sala pequena. Era quase hora do almoço e eu ainda tinha que fazer outras coisas.
- Pegar ou largar. Se bem que agora é pegar ou pegar, porque já te contamos até mais do que deveria.
Olhei para Sang Jin, meu humor péssimo. É o que acontece quando você enfrenta horas de viagem, comida estranha, uma desculpa muito sem noção para seus familiares, amigos e trabalho e simplesmente pega o primeiro vôo do aeroporto internacional mais próximo. Meu coreano estava um verdadeiro horror e eu estava torcendo muito pra que eu tivesse aulas de reciclagem ou que simplesmente me deixassem falar inglês. Pelo menos sei que português eu iria usar muito, especialmente para xingar tudo de mais ruim que eu visse.
- Tá, ok, que mais eu preciso? - ele me entregou a pasta novamente, toda arrumadinha com clipes. De pé e puta nas calças, folheei a primeira página, com todas as informações sobre Ho Seok, desde o primeiro ultrasom até a última vez que fora visto. Era uma senhora pasta.
Mas nada me prepararia para o que iria vir. Quer dizer, eu sabia o que seria, não era burra, mas eu ainda tinha esperanças de que o mico não fosse ser seletivo e cair na minha cabeça novamente.
Infelizmente, o sonho era muito alto.

O barulho do elevador apitou que eu havia chegado no andar e só Deus para saber do arrependimento que me bateu quando cheguei no 411. Ajeitei meu colete desfiado e contei até dez antes de levantar a mão para tocar a campainha.
Só não segui porque a porta automaticamente se abriu e uma menina muito, muito, mas muito magra apareceu, me observando com os olhos mais brilhantes do mundo.
- OI! - ela berrou. - Você deve ser a Park Won hee, eu sou a Juno, sua companheira de grupo!
Sorri sem graça. - É... oi, eu...
- Vem, entra aí, entra aí, GENTE, ELA CHEGOU!
E, surgidas de corredores e portas como formiguinhas, brotaram mais quatro meninas, igualmente magras, de olhos arregalados e sorrisos enormes. Elas pegaram minha mala, me puxaram pela mão e me sentaram em um puff que por pouco não fez minha bunda bater no chão.
- Eu sou a Nanni! - a mais animada disse, me sentando no puff. - Essas são Izzy, Hara e SoYong!!
- Você fala coreano legal? Posso ser sua professora?
- Tá muito frio onde você mora?
- É verdade que no Brasil vocês comem coisas que não são empanadas?
- Você pode me ensinar a sambar? Porque eu sempre quis aprender e...
- Deixem a menina respirar! - uma outra menina, vindo do banheiro. O barulho da descarga ainda estava alta e ela veio bem tranquila, me analisando de cima, enquanto meu osso da bacia estava trancado naquele puff nada fofo. Ela cruzou os braços e me observou, se aproximando muito calmamente, de sobrancelha levantada.
Não vou mentir, não gostei nada. Detesto que me analisem como se fossem a última pipoca doce do cinema.
- Você deve ser a Won Hee.
- Ah, sim. - abaixei a cabeça. Bom, se tinha algo que eu sabia bem era entrar na personagem. Me espanta que nunca tenha passado pela minha cabeça investir nessa coisa de atuação, eu era muito boa mesmo. - Oi, sou Park Won Hee, estou feliz em conhecê-la.
Ela deu um sorriso de soslaio. Continuei não gostando. Na minha cabeça, já tinha dado vários tapas naquela carinha de sonsa monga.
- Meu nome é Rainie. Eu sou chinesa.
- Ah, sim. - sorri. E daí que você é chinesa, minha filha, eu sou brasileira!? - Não me falaram muito sobre minhas companheiras de grupo, então vou ter que conhecer todas! - Nanni deu um berro, soltando meu cabelo e perguntando se ele era natural. Izzy, Bitzy, sei lá, a de cabelo curtinho, pegou minha mão para analisar minhas unhas e as outras começaram a berrar sobre qual seria meu quarto. Rainie continuou de pé me observando, séria, como se conhecesse meus segredos.
Se o propósito era me fazer ficar desconfortável, ela não iria conseguir. Eu poderia ser a idiota da aldeia naquele papel mas era esperta demais em observar os outros.
E essa menina tinha acionado o meu desconfiômetro.

Regras de uma I.P.
Regra #2: Não importa o seu papel, seja sempre mais astuta.

(continua)

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