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Pé de Moleque

Pé de Moleque


Autora:
@heydebee__ | Beta: @heydebee__

Eu estava mal.
Não era o tipo de "mal" de tomar um gole de café e seguir o dia, não.
Era mal de ruim, de pésimo, de desesperador.
E o pior de tudo: minha primeira crise no novo emprego, em outro país. Em um outro idioma.

Quando abri os olhos, naquela manhã, senti vontade de gritar mas, se gritasse, iria piorar tudo. Conheço bem minhas crises de enxaqueca e sei que qualquer movimento brusco, até mesmo mastigando, pode piorar o andar da carruagem.
É óbvio que eu tinha suprimento medicamentoso mas... eu precisava de silêncio, paz e muita escuridão, pelo menos por umas quatro horas. Daí então, talvez e só talvez, eu fosse me sentir bem o bastante para cogitar abrir a porta da geladeira e comer alguma coisa.

Minha primeira ação, ao perceber que estava ferrada, foi pegar o telefone e abrir a conversa com meu superior. Ele haveria de entender, não é? Estava no emprego havia cinco semanas e bem, até onde sabia, ninguém me detestava a ponto de ódio. Talvez, o fato de eu gostar de cozinhar e de vez em quando deixar uns agrados nas mesas das pessoas da minha equipe ajudassem. Afinal, quem não gosta de um docinho no meio da tarde?
- Claro, , tudo bem! - respondeu ele. Não sabia exatamente o quê escrever. Deveria dizer que tenho crises de enxaqueca? Que eu precisava  voltar a usar óculos sempre que fosse vistoriar as apresentações? Eu não sabia. E também não estava com cabeça para pensar nisso.
Minha mesa, cheia de papéis e lembranças de post-its rosa e amarelo na parede pipocaram na minha cabeça, piorando a intensidade.
- Caso não melhore, por favor, me avise que disco "M para Mindy". - Mindy, é claro, a enfermeira da empresa. Ela aparecia sempre que havia ensaio ou quando algo acontecia e precisávamos de algum apoio médico. "Disque M para Mindy", eu dizia, e ela ria bastante. Uma moça baixinha, no alto de seus quarenta anos, doce como ninguém.
- Muito obrigada. Mas sinto que vou ficar o dia no escuro, literalmente! - e um emoji. - Sinto muito pelo desfalque do dia. Amanhã, trabalharei o dobro.
- Não se preocupe com isso. Só foque em melhorar, certo?

Minha ideia inicial era ao menos escovar os dentes e molhar uma toalha, colocar na testa e ficar no escuro do quarto. Acabei tomando um banho quente, mesmo o dia tendo altas temperaturas, troquei de roupa e deitei. Não lembro se dormi ou não mas, cinco horas depois, ouvi batidas na porta.
Tateei o óculos escuro na cama e o coloquei, ainda assim cambaleando até o pequeno hall de entrada. Pelo olho mágico, vi a testa de e fiquei "ué?".
Ele sabia onde eu morava?
Abri a porta.
- Oi.
- Oi, ! - disse baixinho. Sorriu. - Disseram que você estava se sentindo meio mal hoje,então pensei em te trazer almoço e ver como estava. - e ergueu uma sacola plástica.
Eu sabia que o esquema de "leva e traz" era bom mas só quem sabia que eu não estava legal era meu superior.
- A Mindy que me contou. - me encostei na porta e ele entrou, todo altura e sorriso perfeito. Era até estranho ter um garoto tão bonito no meu apartamento mas lá estava. - Eu caí de mal jeito no ensaio e machuquei o pulso. Como já era para termos o break de almoço, resolvi vir te ver. Espero que não se importe, mas pedi a Mindy que me passasse seu endereço.
- Ah... Não, tudo bem.

colocou a sacola em cima da mesa e eu percebi que ele olhava meu pequeno apartamento. Afinal, para quê eu iria querer um maior? Era só eu. Com a graça divina, o salário supria todos os gastos que eu tinha e a quem pagava o aluguel. Eles tinham me achado pelo Linkedin por alguma coisa que eu não me recordo bem, mandaram uma proposta e eu aceitei.
Meus pais não ficaram muito contentes, não. Eles sempre esperaram que eu fosse morar na Europa, não na Ásia. Tive de deixar minha família, minha cidade, meu cachorro, meus amigos e meu maravilhoso arroz com feijão. Eu ainda sentia medo da panela de pressão.
- Mi casa es su casa. - falei, sentando na cadeira da mesa e fechando os olhos. O cheiro era bom mas eu me sentia tão enjoada que era capaz de não conseguir mais que abrir o pacote.
sorriu, sentando-se de frente para mim.
- Bom, eu ia falar em português mas acho que você não iria entender. Muito obrigada pela visita e pela comidinha mas eu não sinto fome, de verdade.
- Como não? - dei de ombros. - Minha irmã de consideração tambem sofre de enxaquecas faraônicas, e ela também fica sem fome. Mas quando come, começa a melhorar. , por favor, come ao menos um pouco. Ou vou ter que apelar?

Abri o pacote e o cheiro do arroz invadiu minhas narinas. Ô, droga! - Olha a sua idade, ! - brinquei, tentando sorrir mas piorando a enxaqueca. Toda e qualquer movimentação precisava ser calculada com antecedência, para não ter danos. - Espero que não se importe. - apontei para o óculos, finalmente me dando conta que tambem estava de pijamas. - Mas meus olhos estão muito inchados para tirar os óculos escuros.
- Tudo bem! - e sorriu. Sorri de volta. tinha esse sorriso maravilhoso, que impedia qualquer um de negar seus agrados e suas vontades. Era quase como ter todas as armas do mundo nas mãos mas outra pessoa ser acusada de assassinato.
- Eu não sei se você vai gostar mas pesquisei na internet sobre comida brasileira mas não achei lugar que fosse sua cara. Então trouxe uma do restaurante perto da empresa, mesmo. Ah, ... está um dia super triste sem você lá.
- Ah, é? - acomodei o arroz no garfo e coloquei na boca. Por um segundo, mas só um, a dor de cabeça diminuiu em uns cinquenta porcento. Talvez meu problema fosse comer? Ou talvez cabeça cheia? Não sei. Mas com ou sem , ela ainda estava explodindo.
- É, sim! Acho que já nos acostumamos com as suas birutices. Não me entenda mal, - apressou-se em dizer. - mas você traz alegria lá pra empresa e nem é falso.
- Ah é? - fiz de novo ao engolir a segunda garfada. - Olha, você está em casa, viu, tem suco na geladeira e ontem de noite fiz uns pé de moleque. - apontei para o pote em cima da mesa, mais distante. - Ia levar hoje, sabe, para agradecer a equipe por ser tão trabalhadora, mesmo que eu saiba que tem gente que não gosta de mim. Mas aí acordei me sentindo super mal e vai ter que ser amanhã. Mas se quiser, os que não estão com fita são extras.
- Você cogitou levar para seus assessorados também? - brincou. A resposta era "não". Embora eu basicamente trabalhasse para ele e o , a gente conversava praticamente por mensagens de celular. Era difícil nos vermos. - Nossa, é muito bom! É amendoim e o que?
- Caramelo. A gente come muito disso, lá no Brasil. , por que veio me ver? - perguntei sem rodeios. Ele piscou, com o pé de moleque a ponto de ser mordido.
Eu sabia que ele tinha uma agenda super cheia, entre ensaios, aulas e sessões de fotos e era esquisito tê-lo na minha casa. Entendo que poderia ser porque sou assessora fo seu grupo e porque ele queria manter uma relação bacana, já que eu era o intermédio oficial entre e com o . Era um cargo novo, na verdade, visto o monte de coisa que já havia acontecido. Estão perseguindo? Manda para mim. Estão com ideias legais? Manda para mim. Eu leio tudo, analiso tudo, respondo todo mundo e o que eu julgar ter futuro, levo para os managers e chegamos a um denominador comum.

- Porque eu quis. - ele mordeu o doce e mastigou. - Sinto que você é uma pessoa boa e verdadeira e é desse tipo de gente que gosto de ter na minha vida.  Você foi a melhor adição que a fez no time do e é minha maneira de agradecer o cuidado que você tem não só comigo e com os rapazes mas com a equipe toda. Mas conte aí, qual foi o gatilho da dor de cabeça? Meu Deus, se você deixar esse pote do meu lado, vou engordar uns 10 kg! Será que me deixam largar de ser artista e me deixam ser da sua equipe? Porque ouvi falarem que você já deu docinhos para eles umas dez vezes desde que chegou.
- Espera, muita informação. - respirei fundo e apertei os olhos. Uma nova onda de tontura estava chegando. Ouvi abrindo a geladeira e pegando a caixa de suco, girando a tampinha escandalosa e colocando o conteúdo no copo. Todo e qualquer som fazia minha cabeça dar voltas mas tinha momentos piores, como aquele, onde a dor de cabeça batia uma panela imaginária na minha frente e todo o barulhinho e tremedeira ressoava nos meus neurônios.

Horrível.

- Ok. Se você deixar de ser artista, eu vou perder meu emprego; logo, você não vai ter a minha equipe. Então, continue sendo meu assessorado e eu tento incluir vocês na proxima leva, embora... você esteja comendo quase tudo. Não vai ser dessa vez.
olhou para o pote e ergueu uma sobrancelha, surpreso. Ele realmente não tinha percebido que tinha "atacado" o pote e eu também não estava me importando. Talvez fosse hora de aposentar os pé de moleque e partir para outra coisa. Biscoitos?
- Me desculpe. - mas não pareceu mesmo preocupado, porque continuou comendo. - , você fics engraçada com esse óculos escuro.
- Minha fotofobia fica ainda mais acentuada quando estou com dor de cabeça. Caso me veja indo tirar fotos do ensaio de lentes de contato, por favor, me lembre que ocasiona dor de cabeça. Eu lembro mas você sabe...
- Claro, claro! Eita, olha a hora! Você doente e eu te alugando nos últimos trinta minutos! Pelo menos você comeu, amanhã vai estar nova!
Olhei para o prato: ainda tinha um terço de comida lá. Talvez, se deixasse na geladeira, poderia comer de noite, caso sentisse fome.
- Preciso ir, deve estar desesperado atrás de mim. Marquei de encontrá-lo no restaurante depois que viesse aqui mas o papo estava tão doce que esqueci total.
Tentei sorrir.
- Obrigada por ter vindo. Obrigada pelo almoço. Não precisava.
- Ah sim, precisava sim! Você falta um dia e a gente já sente falta, então, trate de ficar boa logo!

Nos levantamos e começou a calçar os tênis.
- Mande um beijo para todos, - apelei - diga que é a forma brasileira de... mandar lembranças. - Ah, mando sim. - e abaixou, apontando para a bochecha. - Posso ter o meu beijo agora? Você sabe, para dar sorte pelo resto do dia.
Me inclinei e beijei sua bochecha, cheirosa de caramelo e amendoim. Senti as bochechas queimando mas talvez fosse da dor de cabeça.
- Cuide desse pulso. - apontei e ele olhou para a mão, como se tivesse acabado de lembrar que tinha machucado.
- Ah. Ah, nem está doendo tanto assim. Além do quê, doces sempre melhoram minhas dores.
Abri a porta e ele saiu.
- Muito obrigado pelo p... p... p...
- Pé de moleque.
- Isso, pí du.. ah,  doce!
- Leve esse aqui para o . - botei dois embrulhados em suas mãos. - Como forma de pedir desculpas pela falta e por ter prendido você aqui.
- Não precisa se preocupar. É o mínimo que eu poderia fazer por você, Stevie Wonder.
Ficamos nos encarando pelo meu óculos escuro por algo que me pareceu uma eternidade. esticou a mão ruim e abaixou meus óculos, se deparando com os mesmos inchados e apertados.
Quando os olhos dele se tornaram tão castanhos?
Que viagem! Ele era muitos anos mais novo que eu, no mínimo uns cinco! Foco, , foco!
- Estão mesmo muito inchados. Minha mãe diz que colocar saquinhos mornos de chá de camomila ajudam a desinchar, talvez devesse tentar.
- Diga para sua mãe que com certeza irei tentar fazer isso. - recoloquei os óculos escuros. - Vou fechar a porta, sabe... a claridade.
- Ah, sim, claro, claro. - ele deu um passo para trás e ergueu a mão. - Até amanhã, . Fique boa logo.
- Até amanhã, pequeno grande . Mande lembranças para o pequeno grande . E não coma os pé de moleque dele!
Ele olhou para cima, murmurando alguma coisa como "aguentar a tentação" mas seguiu, mesmo assim, pelo corredor e apertou o botão do elevador.
Ainda com os óculos escuros, deu um último tchauzinho antes de ele sumir pela porta do elevador.
Só esperava que os doces chegassem intactos.

Fim




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